21.4.14

"As Palavras São Noivas que Esperam: dez reflexões a compartilhar". Raúl Leis R.

"As Palavras São Noivas que Esperam: dez reflexões a compartilhar." 
Raúl Leis R.

"Em volta da estrela, em uma bandeira nova, deixemos esta fórmula de amor
triunfante: com todos e para o bem de todos. É o meu sonho, o sonho de
todos: as palavras são noivas que esperam; haveremos de erguer a justiça tão
alto quanto as palmeiras." José Martí, 26 de novembro, 1881.
 


"O povo Kuna mantém viva sua tradição por meio de narrações cantadas pelos Sailas –dirigentes escolhidos e também destituídos pelo povo– enquanto se balançam em suas redes na penumbra do centro de Onmaked Nego, a Casa do Congresso. Os Sailas cantam palavras profundas.   Eles dizem:
– Primeiro, vamos analisar as coisas – e relatam suas histórias sobre a vida. Uma delas é sobre o homem chamado Duiren. Foi em um tempo em que os kunas passaram por cruel dominação; o povo sofria muito e não tinha capacidade, naquele momento, para se libertar da vida terrível que suportava.
Perseguido por essa situação, um ancião fugiu da aldeia com sua mulher e uma neta.
Foram para bem longe, até encontrar a nascente de um grande rio e ali construíram sua cabana. A neta tornou-se mulher e teve uma criança, cujo pai era filho das estrelas. Chamaram-no Duiren.
Os anos se passaram. Duiren cresceu e se tornou um jovem ágil e forte. Um dia, de repente, Duiren fez uma pergunta muito importante:
– Vovô, somos somente quatro pessoas? Não existem mais pessoas no mundo? O que há além de nós, vovô? Há mais alguma coisa além?
– Não há ninguém além de nós, querido menino! Ninguém mais!
– Vovôzinho, tantas montanhas, tanto rio, tantas colinas, tanta terra, tanto céu... só para nós quatro?
– Não há mais ninguém, eu digo – tremia a voz do avô – e o menino ficava em silêncio vendo os passarinhos voarem em círculos, aproveitando o vento para subir, subir, subir.
Semanas se passavam e o garoto insistia;
– Vovôzinho, somos nós quatro, somente?
E o avô também insistia, pois havia guardado cuidadosamente os episódios de horror que atormentara seu povo.
– Sim, Duiren, somos só nós quatro.
Mas Duiren voltava uma e outra vez à carga.
– Então, por que tantas árvores que nem podemos contar? Tantas estrelas! Tantos pássaros? Tantos peixes? Tantos caranguejos? Não há mais gente além de nós, vovozinho? Por que os riachos cantam e alimentam tantos rios? E tantos beijaflores?
E tantos vagalumes iluminam a noite e o arco-íris tem tantas cores?
 
Um dia, o avô não resistiu mais e lhe disse com voz emocionada:
– Meu pequeno... sim, existe muita gente, não somos somente nós.
– E por que não vamos até lá? Por que não vamos conhecê-los, vovô?
– Não! Não podemos ir porque morreríamos! Morreríamos todos!
– E por quê? Por que morreríamos?
O avô contou-lhe, lentamente e com riqueza de detalhes, tudo o que haviam deixado para trás. Duiren se entristeceu e, com seus olhos cheios de lágrimas, subiu a montanha e pediu para ficar só. Vários dias depois, desceu pintado com as tintas coloridas das árvores, demonstrando assim a decisão que havia tomado.
Os Sailas contam que ele se aproximou de sua gente e os incentivou e os conduziu na grande luta que culminou com a libertação do povo.
Dizem que, antes de Duiren, os antepassados não sabiam chorar.
Mas esse grande líder não somente os ensinou a se defenderem, mas também a sentir dor e a chorar, porque ele próprio sentia como ninguém a dor humana e vibrava com a vida pulsando na natureza que o rodeava.

As perguntas que Duiren fez – Somos somente nós? O que há além? – foram fundamentais para a revelação de uma realidade que o comprometeu de modo vital com as necessidades e as tribulações que sua gente atravessava (gente que ele não conhecia).
Não permaneceu ele na tranqüilidade em que vivia, mas atirou sua vida pelos seus e com os seus.
Aquele difícil porvir converteu-se, depois de imensa luta, em liberdade e tranqüilidade.
 
– Somos somente nós? O que há além? – pergunta Duiren, e essas interrogações têm hoje um eco impressionante para nós.
O que acontece com esta parte do mundo, esta “Nossa América” como proclamou José Martí? O que temos sido? O que somos? O que queremos ser? São perguntas fundamentais que podemos agregar à lista.
Existe um futuro sem sonhos? O que faríamos sem horizontes, sem auroras ou entardeceres? O que há além da linha onde se juntam o mar e o céu, cordilheira e firmamento? Os limites de nossas realidades são imutáveis? Podem ou devem existir formas superiores de convivência social?

As utopias são um desafio essencial. A ordem atual quer enterrar a utopia usando golpes de mercado e ofensivas neoliberais A utopia não é a distração, nem a fantasia, nem os espelhismos nos quais se embrenharam os socialistas utópicos; ao contrário, a utopia é concreta, factível e historicamente viável, geradora de ações possíveis e, ao mesmo tempo, janela aberta de par em par a novas utopias.
As utopias são a negação da negação, pois criticam o sombrio, negando o negativo da realidade; descobrem a realidade como processo dinâmico e contraditório, porém sempre em andamento.
As utopias, neste contexto projetam capacidade transformadora e se comprometem com o “transformar o mundo e mudar a vida”, que proclamava André Bretón.

A humanidade sempre construiu utopias e abrigou a idéia da existência de mundos melhores e perfectíveis. Se nos voltarmos para trás na história da humanidade, encontraremos os textos sumérios em que se apresenta uma Época de Ouro, na qual não existiam “víboras, escorpiões nem hienas”; passando pela tradição milenar das civilizações americanas que falam de espaços diferentes como o Paititi, a Cidade Dupla dos Incas; incluindo as tradições ético-utópicas como o Êxodo, a Torre de Babel, a Terra Prometida, o Reino de Deus, a Cidade de Deus agostiniana, o Terceiro Reino de Joaquim de Fiore. No Ocidente, a literatura das utopias se inicia com Platão e Hipodamo, o planejador de cidades, e é impossível deixar de mencionar a Cidade do Sol, de Campanella, a Nova Atlântida, de Bacon, a Abadia de Thelema, de Rabelais, até as utopias modernas, como Freeland, de Hertzka e o Admirável Mundo Novo, de Huxley. O livro Utopia, de Tomás Morus, foi um texto determinante para os professores Stanley Jevons e Athur Morgan (Berneri , 1993). Morus tomou conhecimento da civilização Inca graças aos relatos de Vasco Núnes de Balboa sobre o “descobrimento do mar do sul”, apresentados à Corte da Espanha, em 1514, e que, poucos meses depois, algum viajante levara à Antuérpia, na Bélgica, o que lhe serviu para escrever em latim, em 1515, a Utopia. Quer dizer, há quase cinco séculos, Morus tomou o relato da vida dos Incas e elaborou um dos grandes textos da história da humanidade! Quão distantes e próximas estão as utopias!"

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FUENTE: Educação Popular na América Latina: diálogos e perspectivas. Pedro Pontual, Timothy Ireland (organizadores). Brasília, Ministério da Educação. UNESCO, 2006. Edição Eletrônica. ISBN 85-98171-54-9. 264 p. (Coleção Educação para Todos ; v. 4). Pp. 63-75.

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